quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Marcelo Pinto, o Doutor Risadinha apresenta "O Riso e a Transcendência"

Olá Turma do Riso, tudo certinho? Hoje compartilho com todos vocês um artigo escrito pelo Anselmo Borges no final do mês passado (31/jan/2015) sobre "O riso e a transcendência", veículado no site português DN Opinião. Confiram abaixo na íntegra:

1. Uma vez, uma jovem estudante pediu-me para fazer um trabalho sobre o riso. Porquê? Queria entender porque é que a mãe, entrando na igreja para a celebração da missa de corpo presente da avó, ao deparar-se com o cadáver, começou a rir.
Diferença essencial entre o ser humano e os outros animais é o riso e o sorriso. Eles são manifestação da inteligência superior e de transcendência.
Perante o cadáver, seja ele de quem for, mas sobretudo de um ente próximo e querido, íntimo, há um choque de emoção e razão, sobrepondo-se a razão. De um modo ou outro, acabamos por nos rever no cadáver, a nossa posição futura está ali, desabando então, frente àquela figura coisificada, toda a vaidade e todo o ridículo da soberba e grandeza imaginada, que vão ser pó ou cinza. E aí está a tensão que obriga a transcender. Por outro lado, antes ainda, depois ou em concomitância, está aí a revolta: a minha mãe não foi nem é esta coisa cadavérica aí em frente. No limite do trágico, sobrevém o riso, clamando transcendência. É a explosão do conflito entre o intolerável do que se mostra e uma transcendência para que se aponta.

2. Afinal, nós não rimos tanto com o engraçado, o que aparentemente tem graça, como com o imensamente sério ou o que consideramos tal. Uma vez, na Alemanha, ofereceram-me um livro de anedotas e pude constatar que a maior parte delas têm algo de universal e dizem respeito ao sexo, à morte, à política, à religião, ao Além.

A quem se escandaliza muito com o pôr a nu o ridículo da religião chamo a atenção, por exemplo, para A Relíquia, de Eça de Queirós, que recentemente prefaciei. Anda o rapaz na Terra Santa a gozar a vida e ao mesmo tempo a arrecadar relíquias: uma palhinha do presépio, uma tabuinha aplainada por S. José, caroços de azeitonas do monte das Oliveiras, pedacinhos da arca de Noé... E como não explodir de riso quando, na expectativa da recompensa pela relíquia da coroa de espinhos, percebe que se enganou, pois, desdobrando o embrulho, apareceu uma brancura de linho, que a titi repuxou, espalhando-se, com laços e rendas, a camisinha de dormir da Mary a feder a pecado... Na altura, foi terrível a crítica dos crentes quando o que era preciso era assumir, em riso, a vergonha do ridículo da superstição religiosa e da hipocrisia, que Eça acidamente expunha.

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