Olá Pessoal, tudo beleza? Compartilho hoje com vocês um interessante
artigo publicado na seção “LIBERDADE DE EXPRESSÃO” do site Consultor Jurídico
em 25/fev/2015 pelo Advogado Alexandre Fidalgo sob o título “Não há
justificativa legal para que se criem barreiras ao humor”. Neste artigo
conheceremos como o Supremo Tribunal Federal/STF, se manifestou sobre o humor,
no julgamento da ADI 4.451 referente à ação judicial interposta em face do site
PORTA DOS FUNDOS. Convido à todos lerem e comentarem vossos pontos de vista:
“...a importância, para o homem
e a sociedade, de que se garanta plena liberdade à natureza humana para se
expandir em inumeráveis e conflitantes direções”[i] (J.S. Mill)
Ano passado, em um debate sobre liberdade de expressão, para o qual fui
honrosamente convidado, em determinado momento perguntaram-me se havia de
existir limites para o humor. Efetivamente se questões religiosas, étnicas, bem
como opções sexuais seriam os limites intransponíveis para o exercício do riso,
a ponto de qualquer assunto desse chamado núcleo duro constituir uma
ilegalidade.
Recentemente dois episódios colocaram o assunto novamente em destaque.
O primeiro evento foi o atentado ao jornal francês Charlie Hebdo, que havia
publicado em suas páginas caricaturas de Maomé; e o segundo, acontecido em
terras nacionais, trata-se da veiculação, pelo grupo de humor —
interessantíssimo, e conhecido de todos — Porta dos Fundos, de sátira das
passagens bíblicas relacionadas ao nascimento e crucificação de Cristo.
Se adotarmos o conceito de que o humor é qualquer mensagem cuja
intenção é a de provocar o riso ou um sorriso, entenderemos que através de
filmes, do teatro, da música, da literatura, dos jornais, das revistas, dos
programas radiofônicos, da internet e da televisão faz-se humor.
Segundo registros, o humor foi estudado pela primeira vez na
Antiguidade, talvez com Aristóteles. Cícero também é fonte do vocabulário
romano de humor[ii]. Não há como esquecermos dos chamados bobos da corte, que,
entre os séculos XIV e XVI, tinham como objetivo fazer rir reis e rainhas da
monarquia. Pelo humor, os “bobos” estavam até autorizados a criticar o
comportamento da monarquia. Mais recentemente, pelo século XVI e XVII, o
dramaturgo Willian Shakespeare produziu inúmeras obras que tinha o humor como
forma de expor suas observações.
Percebe-se, portanto, que o humor sempre fez parte do caminho da
humanidade.
Shakespeare talvez seja um bom exemplo para partirmos para a análise
dos limites do humor, tendo em vista que suas obras, ainda que na roupagem do
humor, tinham como finalidade muito mais do que provocar o riso. As obras do
referido dramaturgo impunham uma reflexão dos conflitos da humanidade, das
crises de amor, de comportamento e de preconceitos sociais.
Lendo as obras de Shakespeare, ou mesmo estudando as funções do bobo da
corte, é que podemos entender melhor a finalidade do humor, admitindo que o
riso talvez não seja a principal finalidade da obra, mas sim apenas um brinde,
um algo a mais, em que o tema central sejam a verossimilhança dos fatos
retratados, a permitirem uma reflexão, uma crítica.
"Humorismo não é apenas uma forma de fazer rir. Isto pode ser
chamado de comicidade ou qualquer outro termo equivalente. O humor é uma visão crítica do mundo e o riso, efeito colateral pela
descoberta inesperada da verdade que ele revela", asseverou o então
ministro Carlos Ayres Brito no julgamento da ADI 4.451.
O humor, além de evidentemente ser marcado pela descontração, vale-se
do exagero, da hipérbole, do óbvio, do absurdo como premissa para qualquer
análise a respeito da possibilidade de se impor limites a esse tipo de
comunicação.
Nos anos 80, no auge do grupo Os Trapalhões, a troça que mais se fazia
era a de brincar com a etnia do personagem Mussum, com a característica do
personagem negro e que gostava de tomar um “mé”. Também Zacarias era um
personagem central da graça, em razão de suas características físicas, como
também fora Didi, um personagem que encarnava o nordestino por vezes inocente e
outras tantas perspicaz, tal qual em Macunaíma. Todos que assistiam ao programa
tinham como premissa para as suas interpretações, mesmo que inconscientes, que
se tratava de graça, de humor, cujas palavras expressadas pelos personagens não
podiam ser interpretadas literalmente.
Em tempos mais presentes, podemos citar a frase de Danilo Gentili
postada na internet, em que, diante da possibilidade de o bairro de
Higienópolis receber uma estação de metrô e dos moradores desse antigo e
tradicional local terem se manifestado contrariamente à linha metroviária, o
humorista assim escreveu: "entendo os velhos de Higienópolis temerem o
metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em
Auschwitz", em clara referência ao campo de concentração nazista e por conta
de o bairro concentrar inúmeros descendentes de judeus.
Em nenhuma dessas passagens percebe-se a vilania da ofensa como
propósito da graça. Este é ponto central para, a nosso ver, afastar o
policiamento que se faz a respeito do humor, buscando-se defender que
determinados assuntos não podem ser objeto dessa forma de manifestação do
pensamento.
Lembrando do que falamos no primeiro artigo desta coluna, o legislador
constituinte deixou bastante claro a impossibilidade de intervenção estatal no
exercício da manifestação de pensamento (artigo 5º, inciso IX e artigo 220,
parágrafo 1º da CF). E nesse sentido não há justificativa legal para que se
criem barreiras ao humor, mesmo para os assuntos duros como etnia, sexualidade,
política e religião.
Daí porque acertada a decisão da justiça paulista que determinou o
arquivamento do procedimento instaurado contra o grupo Porta dos Fundos, que
satirizava o nascimento e crucificação de Cristo. Como também temos de lamentar
a agressão ao jornal francês, por conta das charges de Maomé estampadas em seu
periódico, pois elas, de bom ou mau gosto, representam uma forma de exercício
da palavra, uma manifestação da democracia.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.451, assim se
manifestou a respeito do humor:
“O humor presta serviço à Democracia. Com seu modo elegante ou um tanto
agressivo, fino ou mais explícito, direto ou por ironia, ele consegue
escancarar os conflitos sociais, políticos e culturais de uma forma não
violenta, mas reflexiva. E reflexiva da melhor maneira, através do sorriso.”
Nesse sentido, Bobbio[iii] e Alexis de Tocqueville[iv] há muito
sustentam que a democracia pressupõe o exercício do juízo crítico pelos
cidadãos, de modo que privar a sociedade de separar a hipérbole da realidade é
negar ao país uma maior democratização.
Há uma confusão estabelecida para se defender a condenação do mau humor
como se ato ilícito fosse, muito possivelmente por conta de uma interpretação
canhestra dos que defendem o politicamente correto. Na passagem do humorista
Danilo Gentili, acima citada, em que faz alusão a Auschwitz, como nas
caricaturas de Maomé feitas pelo jornal francês, ou ainda a brincadeira feita
pelo Porta dos Fundos, podemos condenar o mau gosto, a desnecessidade dessa
abordagem ou a forma dessa abordagem, mas em hipótese alguma concordamos que se
trata, por si só, de violação às normas jurídicas. Como faço questão de
sustentar, mau gosto não é ilícito.
A propósito, o Superior Tribunal de Justiça analisou demanda que
discutia a prática de humor e assim se manifestou:
“...a respeito do ‘nível’ do humor praticado pelo periódico – apontado
como ‘chulo’ – não é tema a ser debatido pelo Judiciário, uma vez que não cabe
a este órgão estender-se em análises críticas sobre o talento dos humoristas
envolvidos; (...) Não cabe ao STJ, portanto, dizer se o humor é ‘inteligente’
ou ‘popular’. Tal classificação é, de per si, odiosa, porquanto discrimina a
atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a
consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela
menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos,
se analisados por pessoas de formação intelectual ‘superior’ – e, só por isso,
já dariam ensejo à compensação moral quando envolvessem uma dessas
pessoas...”[v]
Não se quer dizer, contudo, que o humor é uma excludente de ilicitude,
de modo a permitir que o uso da palavra na forma de humor não possa resvalar
numa ilegalidade. Dependendo das circunstâncias, poderá haver ofensa ou qualquer
outra violação a direitos. Mas toda interpretação nas questões que envolvem o
humor devem ser por demais elásticas, na medida em que é da essência da
"caricatura, da sátira e da farsa operarem mediante deformações
hiperbólicas da realidade, residindo nesse exagero ou distanciamento dramático
em relação ao real, que pode ser tanto dos eventos históricos-sociais, como das
pessoas ou das coisas o fator específico da identidade dessas formas de criação
artística e da sua comicidade mesma, cujas manifestações, neste caso,
constituem o elemento alegórico de uma crítica severa, mas justa, inspirada por
motivo de grande valor social" (Cesar Peluso, ADI 4.451).
A elasticidade para a interpretação do humor deve levar em consideração
as pessoas, os fatos e as circunstâncias objeto da graça. Da mesma forma que
para uma crítica jornalística em que os atores da vida pública devem tolerar
mais as notícias, o mesmo deve acontecer para o humor.
Nos tempos atuais há, sem dúvida alguma, uma suscetibilidade exagerada,
em que uma crítica ou uma sátira mais cáustica provocam toda sorte de
intolerância, como a que motivou o deputado Marco Feliciano a representar o
site Porta dos Fundos por conta da esquete intitulada Especial de Natal, bem
como contribuiu — além evidentemente de um radicalismo religioso —, para o
atentado ao jornal francês Charlie Hebdo.
É fácil defender a liberdade de expressão, a Democracia, quando temos
de apenas concordar com o direito que entendemos como certo. Na medida em que
somos objeto dessa liberdade, agimos como tiranos contra a nossa própria
conquista. Como escreveu o articulista da Folha de S. Paulo, Contardo
Caligaris, "a liberdade do vizinho (sobretudo se ele for muito diferente
de mim) é sempre a melhor garantia da minha própria liberdade."
[i] Mill, John Stuart. A liberdade: Utilitarismo. São Paulo: Martins
Fontes, 2000
[ii] Conf. Bremmer,
Jan e Roodengurg, Herman. Uma história cultural do humor. Rio de
Janeiro: Ed. Record, 2000, p. p. 17
[iii] Bobbio, Norberto. O futuro da democracia;
[iv] Tocqueville, Alexis de. La Democracia en América
[v] RESP 736.015