Olá Pessoal, tudo belezinha? Compartilho com vocês uma matéria super completa escrita por Rodrigo Levino e postada em 04/11/2011 no site da Veja.com.br sob o título
Nas trincheiras do humor
A discussão em torno da piada de mau gosto de Rafinha Bastos contra Wanessa Camargo é, em retrospectiva, apenas o episódio mais recente de uma história marcada por alfinetadas, ira e, é claro, risadas. A história do humor
A piada de mau gosto disparada por Rafinha Bastos contra a cantora
Wanessa Camargo – e seu bebê – causou uma forte reação negativa. Em
contraposição àqueles que o criticaram, surgiu uma brigada de defensores. Para
esses, a questão mais importante não é o bom gosto do humor, mas a liberdade
que o humorista deve ter para fazer a graça que bem entender.
Foi o que disse João Pereira Coutinho, articulista da Folha de S.
Paulo, que em artigo sentenciou que, em torno do imbróglio Rafinha
Bastos, “a questão principal passa por saber se uma sociedade livre deve
conceder espaço para que opiniões fortes, grotescas e até ofensivas possam ser
proferidas em público”. Danilo Gentili, sócio de Rafinha no clube Comedians, em
São Paulo, foi outro que recorreu ao direito do comediante à liberdade de falar
o que quiser, em defesa do colega. Em entrevista ao site da revista Caras,
Gentili apregoou que "qualquer comediante tem que ter o direito de falar o
que quer, de testar" uma piada. "Se não deu certo, se alguém não
gostou, desculpa, vamos para a próxima", disse. Legítimo, pena ele
ter se esquecido de que também deve dar liberdade para que os outros o
critiquem.
A liberdade deve vir, de fato, em primeiro lugar. Justamente por
ser uma ferramenta que desafia com frequência a autoridade – seja a do
governante, seja a da maioria – o humor costuma ser a primeira vítima das
sociedades autoritárias. Mas, uma vez que se esteja de acordo que o Brasil de
hoje não é o Brasil da ditadura militar, muito menos um país sem canais de
expressão para quem quiser usá-los (nem que seja com um blog), resumir a
discussão a isso é deixar de fora muita coisa.
Se a história do humor é, em boa parte, a história do esforço de
artistas e intelectuais para garantir o seu direito de dizer as coisas mais
ultrajantes em público, ela é também uma história de distinções sutis e de
gêneros que foram lapidando suas características ao longo dos séculos, à medida
que encontravam seus gênios e grandes talentos. Humor é, sim, algo que se
discute. E o momento é bem propício para fazer isso no Brasil.
A história está repleta de inimigos do humor. Na Antiguidade,
Platão (428-348) o rechaçou, alegando que a seriedade das reflexões filosóficas
não permitia descontração. Condenado pela Igreja Católica, que no período da
Inquisição chegou a vê-lo como sintoma de possessão demoníaca, na Idade Média o
riso sobreviveu em festejos populares, de caráter carnavalesco ou comemorativo
de colheitas e de estações, e nos palácios, na figura do bobo da corte, sempre
subordinado aos mandos e desmandos do rei. A liberdade para criar e para fazer
oposição pelo riso só retornaria com a do pensamento, no Renascimento. Exemplo
maior dessa liberdade foram os episódios em que a antes temida figura papal
surgiu ridicularizada em versos e em ilustrações que a mostravam na forma de um
asno.
Uma outra narrativa corre em paralelo a essa: a da evolução das
formas de humor. Com suas peças, Aristófanes, o pai da comédia grega, golpeava
políticos e o que ele considerava excessivo nas mudanças de costumes da Grécia
Antiga. Em Roma, no auge do império, a classe dominante enfrentou o humor
corrosivo de Juvenal. Na série de poemas intitulados Sátiras,
ele enfileirou boutades como “em Roma tudo se compra” e “alguns tiveram a forca
como recompensa do próprio crime. Outros tiveram a coroa”, símbolos do espírito
oposicionista em que o humor é capaz de plasmar-se. Na Idade Média, o clérigo
François Rabelais fez uso de lendas populares cômicas, pantominas e romances de
tradição oral e, com um traço de escatologia, deu vida a poderosas obras
cômicas como Pantagruel
e Gargântua.
Alheio à consideração de filósofos e à força contrária dos
políticos, o riso continuava a engendrar novas formas de humor. Na
Inglaterra elisabetana, despojado de palavrões e gestos obscenos, ele se
refinou. Nascia aí o reputado humor inglês, marcado pela sutileza e pela inteligência.
Fazer rir não era uma proposta gratuita, apoiada em argumentos chulos. Estava,
antes, ligada a uma visão de mundo que autores como William Shakespeare
imprimiam em suas peças. O riso era uma lente até para enxergar a tragédia: a
condição humana finita, grotesca e frágil passou a ser risível. Como
contraponto ao sisudo Platão, “que nunca foi visto a rir muito”, o Iluminismo
oferece o exemplo de um filósofo igualmente carrancudo – mas amigo do riso.
“Voltaire disse que os céus nos deram duas coisas para suportar as vicissitudes
da vida: a esperança e o sono. Poderia ter acrescentado o riso”, disse Immanuel
Kant, autor da célebre Crítica da Razão Pura.
À beira da virada para o século XX, o humor foi definitivamente
assimilado pela imprensa e pela intelectualidade e abriu caminho para o
surgimento de grandes artistas cômicos. Embrenhado na sociedade, foi absorvido
pela indústria cultural, que para ele reservou um gênero, o cinema, onde nomes
como Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Loyd, além dos irmãos Marx, se
saíram com grandes sacadas. Era a gênese do que mais tarde seria levado às mais
risíveis consequências com Mel Brooks, Peter Sellers e Woody Allen.
Pontos fundamentais na forma e no conteúdo do humor se
estabeleceram principalmente no pós-guerra. No rádio, e mais tarde na
televisão, formatos como os sitcoms e os esquetes se consagraram, tendo como
matiz os pequenos espetáculos improvisados com influência do teatro e da
Commedia dell’Arte italiana, nascidos 300 anos antes.
O stand up comedy, atualmente em alta no Brasil, grassava então nos Estados Unidos, onde chegou para fazer a América dois séculos depois de surgir em espetáculos solos de artistas ingleses e irlandeses, na Grã-Bretanha. De Bill Cosby, passando por Jerry Seinfield, até Chris Rock, Sarah Silverman e Louis CK, os expoentes do gênero traçaram linhas claras de atuação.
A principal delas é que humor é, sobretudo, um ponto de vista, uma maneira como se enxerga o mundo – não uma redoma da qual se possa entrar e sair sem assumir responsabilidades. A liberdade de fazer piada não torna o comediante imune a críticas. A piada de Rafinha Bastos que esquentou contendas, por exemplo, não tem função social ou política. Nem graça. Não cumpre o que, segundo o historiador da USP Elias Thomé Saliba, autor do livro As Raízes do Riso, é o seu papel: alterar sentidos, subverter realidades. Se uma piada não é capaz disso, perde-se na própria nulidade.
O stand up comedy, atualmente em alta no Brasil, grassava então nos Estados Unidos, onde chegou para fazer a América dois séculos depois de surgir em espetáculos solos de artistas ingleses e irlandeses, na Grã-Bretanha. De Bill Cosby, passando por Jerry Seinfield, até Chris Rock, Sarah Silverman e Louis CK, os expoentes do gênero traçaram linhas claras de atuação.
A principal delas é que humor é, sobretudo, um ponto de vista, uma maneira como se enxerga o mundo – não uma redoma da qual se possa entrar e sair sem assumir responsabilidades. A liberdade de fazer piada não torna o comediante imune a críticas. A piada de Rafinha Bastos que esquentou contendas, por exemplo, não tem função social ou política. Nem graça. Não cumpre o que, segundo o historiador da USP Elias Thomé Saliba, autor do livro As Raízes do Riso, é o seu papel: alterar sentidos, subverter realidades. Se uma piada não é capaz disso, perde-se na própria nulidade.
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